“O CRACK É FEITO COM A RASPA DO CHIFRE DO DIABO”

Há poucos dias participei de gravação para o programa TVE Debate com mais dois convidados : o coordenador da Comunidade Manassés e o Delegado Titular da Delegacia de Tóxicos e Entorpecentes.  Desde as primeiras perguntas do entrevistador defini minha posição: o consumo de drogas raramente é causa; geralmente  é o sintoma revelador do desamparo de alguns diante de inúmeras circunstâncias impostas pela vida, individual ou coletivamente. Minha intenção era deslocar o eixo do debate, deixando a droga em segundo plano para colocar o humano, ou melhor, a condição humana, relacionada com seu conhecimento da morte , da finitude, e sua capacidade de falar desta condição, como fundamental. Neste sentido, defendi que a prevenção deveria ser entendida na dimensão da restauração dos laços, elos, e acordos que possibilitam ou sustentam as relações entre os humanos, e não centrada no “drogas tô fora” ou numa política centrada na repressão ou “guerra contra as drogas”. O alvo não deve ser as drogas mas a sociedade que descompassa cada vez mais os avanços tecnológicos e a tolerância com as diferenças, a estabilidade cedendo lugar ao transitório, descartável; a superficialidade em lugar do consistente. Nesta circunstâncias o uso de drogas, legais e/ou ilegais é uma possibilidade dos humanos para suportar o esgarçamento social, a solidão, o desamparo. A prevenção não deve ser voltada para a droga mas para a longa e difícil reconstrução das regras , valores e princípios destituídos de lugar, atualmente, entre nós. Depois disto, nos foi proposto o tema da violência relacionada com as drogas. Novamente fui um tanto discordante na medida em que não reconheço a violência alardeada aos quatro cantos do Brasil relacionada com o consumo de drogas ilícitas. Para mim, a violência está fundamentalmente vinculada à luta pelo domínio de territórios de tráfico. A luta é econômica, no campo do capital. As referências à violência produzida por alguns dependentes (categoria diferente do experimentador ou do consumidor eventual), nunca é colocada na perspectiva do mal-estar-do-usuário, não raro portador de transtorno mental e sempre um excluído na geografia das possibilidades sociais. Tratam quase sempre da violência no singular, única, quando a violência é múltipla em suas práticas e significados pessoais e sociais. Fico mais isolado ainda quando proponho que a demonização do crack, razão do debate, desvia nosso olhar. E mais, o crack não é um bom objeto de comércio porque desorganiza a nível social e mata o usuário. Neste sentido, penso que o destino do crack é o fracasso enquanto produto de mercado. Seu comércio fracassará na medida em que os humanos se derem conta que esse produto é radical: acaba com o sofrimento, acabando com o sofredor. Não é uma boa alternativa. Contudo, alguns, aqueles cuja dor for insuportável e incontornável, encontrarão no crack a “saída”, como no suicídio. Felizmente, o suicídio não é a regra, é a exceção ; a saída monstruosa para uma “falta-dor” monstruosa. No final do programa, o entrevistador nos perguntou – a título de provocação – e a legalização? Não hesitei e respondi: a legalização não resolverá o problema do consumo no âmbito da clínica. A legalização atingirá o coração da violência porque acabará com o tráfico; a Lei imporá as regras… Neste momento, ouvi o representante da Comunidade Manassés bradar: o crack é feito com a raspa do chifre do diabo! O programa acabava, era impossível retomar o diálogo, agora, um tumulto de vozes. Só me restou dizer entre uma frase e outra: prá mim o crack é feito de cloridrato de cocaína, produto químico do mundo dos humanos, enquanto que o chifre do diabo, é coisa do mundo divino… O programa acabou.

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Por que decidi criar um blog

Nada me irrita mais do que a demonização das drogas. Ultimamente, todos  sabidos e ignorantes dizem o que podem e não sabem sobre o crack.  Já vi isto com a maconha e ácido (LSD).  Já li sobre balas distribuídas em portas de escolas, capazes de enlouquecer crianças e adolescentes. Nada disto era verdade. Agora, atribui-se ao crack as mazelas de pobres e menos pobres quando, na verdade, dever-se-ia evidenciar o enfraquecimento de nossos laços sociais e de nossos compromissos, oriundos da reflexão ética e tornados moris, isto é, moral, conduta, orientação a seguir.

Demonizar para esconder nossa incapacidade de enfrentamento da realidade, demonizar para ganhar o apoio fácil de quem prefere não saber para fazer de conta que resolve, pelo sintoma, em lugar de cuidar das causas. As drogas, mesmo o crack, são produtos químicos sem alma: não falam, não pensam e não simbolizam. Isto é coisa de humanos. Drogas, isto não me interessa. Meu interesse é pelos humanos e suas vicissitudes. Por isso, nada me irrita mais do que a demonização enganosa.