CRACK: É CADEIA OU CAIXÃO – UMA PROPOSIÇÃO INDECENTE

No Brasil, até meados dos anos oitenta, as intervenções envolvendo as drogas ilícitas, careciam, geralmente, de apoio científico, ou consideravam as drogas um mal a ser erradicado, apoiando-se em uma Lei orientada pela repressão (Lei 6368/1976-Lei Antitóxicos do Brasil). As atividades ditas preventivas tinham como princípio acentuar o caráter danoso das substâncias, centrando-se quase que exclusivamente nos danos à saúde e morte dos usuários. Esta orientação recebeu o nome de “pedagogia do terror”.

A partir dos trabalhos epidemiológicos e sócio-antropológicos desenvolvidos de 1987 até os dias atuais, foi possível evidenciar não somente as características quantitativas do consumo, mas também suas características qualitativas. Além disso, a clínica evidenciou o lugar da substância na economia psíquica do consumidor, deixando de considerar o uso de drogas ilícitas como um mal a ser extirpado a qualquer custo e sim, uma alternativa diante do sofrimento físico, psíquico e social.

Fez-se a necessária distinção entre o consumo experimental, eventual e a dependência, esta última reconhecidamente uma doença. Evidenciaram-se os riscos inerentes ao consumo de quaisquer substâncias psicoativas, sem, entretanto, demonizá-las. Nesta mesma direção, caminharam as novas atividades preventivas, rebatizadas como protetoras da vida (educação para a saúde), constituindo-se em mais do que a mera informação sobre as substâncias e seus efeitos – informação necessária, mas não suficiente – a educação para a saúde implicou na abordagem dos agravos à saúde em uma dimensão mais ampla e complexa.

Vale lembrar que, o reconhecimento da epidemia de SIDA/AIDS exigiu dos profissionais da saúde, nos anos noventa, o desenvolvimento de estratégias voltadas para os usuários de drogas injetáveis (UDIs), nascendo daí os programas de redução de danos, representado em particular, pelo fornecimento de seringas e preservativos aos usuários, apoiados em uma relação de confiança, respeito aos indivíduos e garantia de seus direitos fundamentais e de cidadania.

Lamentavelmente, uma parcela não negligenciável da população – em geral vinculada a grupos religiosos – continuou a enxergar nas drogas ilícitas um mal a ser combatido, sobretudo após a divulgação crescente pela mídia dos danos causados pelo CRACK e, mais especificamente, a sua relação com a violência e morte.

Infelizmente, também, estas circunstâncias foram fortemente associadas às práticas de consumo e nunca – ou quase nunca –, ao tráfico, comércio sem limites ou fronteiras, gerido por uma só regra: a violência e morte. Longe de voltar seus olhos para as condições sociais – desigualdade, exclusão, falta de oportunidade na ascensão social e educação – dentre muitas outras, diversos segmentos sociais tem adotado discurso banal e demonizador, expandindo-se numa espiral enganadora.

Em nome da proteção de nossos jovens, a “guerra às drogas” voltou com força à cena pública. Na Bahia, foram expostos outdoors e busdoors sugerindo que 80% das mortes (sem especificá-las) estariam relacionadas com o crack. As fotos mostravam pés com etiqueta claramente relacionada à morte violenta e ao Instituto Médico-Legal, ou então mãe lamentando a morte de seu filho(a) pelo crack.

É curioso que as televisões mostrem sempre, como argumento em sustentação ao horror relacionado com o crack, cenas envolvendo pessoas em extrema exclusão e desfavorecimento físico, psíquico e social, expandindo de modo “natural” estas cenas para a classe média e responsabilizando o “objeto droga-crack” pela infelicidade e mal-estar que marca a sociedade brasileira contemporânea e, consequência inelutável, sugerindo que o banimento da droga seria igual à restauração dos valores e da paz social.

Há mesmo uma clara proposição que responsabiliza o consumidor, objetivamente, pelo tráfico e, consequentemente, pela violência e morte: CRACK: é cadeia ou caixão. Sem consumo o tráfico para. Proposição tão fácil de aceitar quanto enganosa.

Os humanos não são o mosquito da dengue: não basta acabar com a droga – leia-se crack – para acabar com o tráfico. Haverá sempre uma nova droga, compatível com os tempos e lugares. Armar o Estado para lutar contra o crack ou segregar seus usuários em instituições totalitárias e exclusoras significa errar completamente o alvo.

O crack é o sinal indicativo da sociedade atual que rompeu laços importantes para sustentação da sociabilidade e destituiu de valor dimensões fundamentais de representação de Lei, tais como pais, escola, governos, polícia, para citar algumas.

Portanto, muito mais do que demonizar uma droga, através de afirmações indecentes, é necessário reinventar a ética enquanto espaço de reflexão, ressignificar valores morais e refazer os laços sociais indispensáveis para a convivência humana.

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