Não olhei a data do meu último post, mas sei que foi há muito tempo. Tenho pensado nisto e tentado compreender esta resistência comigo mesmo e buscado as razões que tornaram minha alma indisposta.
A mais fácil resposta vem do tempo: estou envelhecendo e já vivo trabalhando, dias mais, dias menos, desde 1980 – trinta e dois anos – com pessoas envolvidas direta ou indiretamente com o consumo de álcool ou outro tipo de droga.
Não me convenço disto porque continuo pensando, e agindo, propondo inovações como foi o caso, recentemente, do Ponto de Encontro, atividade inspirada na experiência européia e que consiste em um serviço de baixa exigência, voltado para o acolhimento de pessoas fortemente marcadas pela exclusão de qualquer possibilidade que não seja experimentar a fome, o medo, a violência física e psíquica e a morte.
Neste Ponto de Encontro, estas pessoas encontram mãos dispostas a tocá-las, encontram um café, um banho, encontram ouvidos sensíveis e muita, muita consideração pelo fracasso, numa sociedade cada vez mais exigente, competitiva e orientada pelo ter em lugar do ser, como já foi dito e escrito por muitos. Também ajudei a nascer o Saúde (de Cara) na Rua, atividade voltada para a informação da comunidade sobre as substâncias psicoativas, de modo lúdico, com alegria e seriedade.
Envelhecer não me fez mal; por que, então, meu silêncio? Será porque a comunidade do bairro onde está localizado o Ponto de Encontro em Salvador luta, desesperadamente, para expulsá-lo de lá, sob a justificativa de que os usuários do Serviço são bandidos, drogados, ameaçadores e que devem ser internados (ou encarcerados), longe dali?
Será que meu silêncio tem a ver com o Parlamento Brasileiro que deixou de fora da proibição de propaganda na mídia a cerveja, porque esta bebida tem teor alcoólico abaixo de 12 graus Gay Lussac, mesmo sendo o produto psicoativo mais consumido e que mais contribui para as mortes no trânsito – cidades e estradas – todos os dias, anos a fio?
Ou será que meu silêncio tem a ver com as insistentes tentativas, apoiadas por deputados estaduais e federais, de tornar empresas particulares – Comunidades Terapêuticas – beneficiárias de recursos do SUS?
Ou, será que pesa mais sobre mim as brutais intervenções dos Governos Municipais do Rio de Janeiro e São Paulo, os dois faróis que iluminam o Brasil, com a ajuda das polícias locais, recolhendo moradores de rua sob o pretexto de que são usuários do temível crack, como se fosse a droga a causa de violência e não a violência a causa de consumo do crack e outras drogas.
Pior, a Presidente da República e o Ministro da Justiça acreditam – ou dizem acreditar – na internação compulsória como solução. Aliás, devo ser justo: o Ministério da Saúde , historicamente, trata mal, muito mal a saúde mental e, por extensão, os usuários de drogas legais e ilegais e participa destas intervenções.
Li, ontem, e fiquei sem fala, um e-mail dando conta que o Governo de São Paulo não financiará mais os serviços que tenham como norte técnico a psicanálise, “porque os resultados são demorados e sem demonstração de que sejam eficazes”, isto relacionado aos portadores de autismo e outras patologias mentais. O que posso dizer? Talvez ficar em silêncio, inundado de vergonha e pensando: o que dirão meus colegas argentinos, chilenos, espanhóis, italianos e franceses sobre isto.
Há algo melhor do que a palavra para dar conta de nossa condição humana?
Será que meu silêncio tem a ver com uma mídia nacional que se interessa mais pelo horror disfarçado em reportagens pseudocientíficas, do que pela informação técnica, honesta?
Devo silenciar novamente: acabo de falar longamente com a Coordenadora do Ponto de Encontro; fico sabendo que pouco mais de uma dezena de pessoas, aquelas que não têm mais do que a violência para lidar com o mundo, apareceu no serviço, alguns alcoolizados, provocadores, outros, mais cordatos, querendo “encarar os problemáticos” fisicamente; os moradores convocaram a polícia; um proprietário queixou-se que sua família estava refém daquelas pessoas e se fazia porta-voz da insatisfação pela convivência com uma gente meio-animal, meio-bandida, meio-drogada e, só um pouco, ainda gente.
Na voz de minha colega Diretora, um quase desespero, um quase pedido de socorro, um quase sofrimento explícito, mas, e isto foi o que me animou, havia também em sua voz uma forte determinação de continuar buscando soluções técnicas “de lutar a boa luta”. Decidi que vou ficar menos silencioso.
Que bom revelouvi-lo!
Talvez porque de perto nada é igual, Dr. Nery! Tivesse agora tempo e espaço e também me calaria mais. É uma conquista! Tão importante quanto a conquista de espaço, voz e ouvidos para quando fala.
Quanto ao quadro que descreve, é também efeito da droga da midiatização, imediatização e comercialização de tudo, inclusive da “miséria do mundo”. A impressão é que sem um necessário afastamento… de dentro das disputas por rentabilidade, poder e visibilidade… até as pessoas mais lúcidas e notáveis que conheço (ou conheci), não conseguem enxergar o que de fato importa… não conseguem manter o discernimento.
O fato é que, de perto, a cegueira até parece inevitável, conforme constata o poeta Orlando Pinho: “do primeiro ao último passo, você corre sempre o risco de, pelo PERFIL, ver tudo e cara-a-cara não ver quase nada”. Já eu, Caetaneando, diria assim: “Enquanto os homens exercem seus podres poderes, morrer e matar de fome, de raiva e de sede são gestos naturais!”
Mas deixa estar que as vezes calar é apenasmenteinteligenteprudente!
Um abração!
gostei muito de seu comentário vivo o que descreve, tenho esperança que pessoas cultas com nery e você sejam reconhecidos pelos meios de educação deste país.
Querido Nery, ainda estou tomada pela emoção de um dia de encontros intensos no Ponto de Encontro, mas confortada pelas suas palavras que tão brilhantemente relatam fragmentos de mais este dia. O ponto de Encontro é um lugar muito especial, pois essa gente, só um pouco ainda gente, lá é gente de verdade; compartilham suas histórias e nos fazem sofrer junto com elas; quantas vezes fiquei a pensar como são fortes, como suportam a dor de existir, talvez apenas por mais um dia. O amanhã não existe, mas existe o Ponto de Encontro. Esse lugar mágico que se tornou o lugar para onde ir para quem não tinha nenhum lugar. A cada dia chegam mais pessoas, meio gente, buscando ser gente… e eles são tantos, e tão feios, e tão mal vestidos, e tão mal educados, e tão sem sonhos, que amedrontam a comunidade, que diz: vocês trouxeram essas pessoas para cá! Mas, onde andavam essas pessoas se não por lá, invisíveis que tornaram-se visíveis pois que agora estão juntos, cozinhando juntos, conversando juntos, aprendendo a ser gente e lutando para que este lugar continue sendo o seu lugar para onde ir. O nosso desafio hoje é fazer com que a comunidade do Santo Antonio, esse lugar lindo, cheio de gente bonita, acolha essa gente feia e junto conosco venham “lutar a boa luta”, mostrando ao mundo que interná-los, prendê-los, dispersá-los ( a exemplo do Rio e São Paulo ) é uma medida que está fadada ao fracasso. Não temos mais como continuar a esconder os invisíveis que se multiplicam em todos os espaços da cidade. Torná-los gente junto com a gente é justo, é digno, é humano.
Obrigado por nos ensinar a “lutar a boa luta”
Patricia Flach
Coordenadora do Ponto de Encontro.
Patricia,
Gostaria de conhecer você, conhecer o Ponto de Encontro e quem sabe(?) me tornar uma voluntária!
que o espirito santo de DEUS te exalte e fortaleça pois tu é benção na vida de pequeninos que anseião por vida e você se faz vida para muitos pois na ha preço que pague por uma alma.
Nery, você é tão grande, tão lindo e tão acolhedor! O seu trabalho, sem dúvida, é o que me move para continuar na Psicologia e acreditar ser possível fazer coisas que fazem sentido… Lutar pelo que se acredita e tornar o mundo mais humano, mais saboroso… espero que as frustrações não sejam grandes o suficiente para esconder dos seus olhos os frutos do seu trabalho que contagia as outras gerações de jovens iniciantes na área, como eu. Espero um dia ser grande, linda e acolhedora como você. Um abraço.
Nery, conheci você há 15 anos em um evento que fizemos no GREA-USP sobre a maconha. Eu, recém-formada em psicologia, não tinha (como ainda não tenho) nada a ver com a lógica da psiquiatria e naquele momento as suas palavras foram fundamentais para mim, era como se de repente eu tivesse finalmente ouvido alguém se aproximar do ser humano e da complexa relação existente entre as drogas e as pessoas. Finalmente o foco não estava na droga, mas na relação. Depois disso saí da USP e fui fazer um estágio no Marmottan quando o Olivenstein ainda estava vivo e bastante ativo. Ouví-lo foi fundamental para que pudesse fazer determinadas escolhas na vida e por isso, não pare de falar e escrever, não opte pelo silêncio porque sua voz é muito importante para mim e tenho certeza que para muitas e muitas pessoas….
Que bom que retomou o blog , Nery! Você deve desconfiar que sou uma grande entusiasta disso aqui.
Acredito mesmo que a internet pode ser uma ferramenta poderosíssima. Isso, aliado a seu talento para comunicar e competência reconhecida na área de álcool e drogas são um instrumento a mais para a ” boa luta” de que você e Paty falam.
Obrigado por ajudar a despertar meu interesse e contribuir com minha inserção nesse universo tão complexo e tão importante que é o de pensar e atuar em prol da garantia de direitos e diminuição da exclusão da população usuária de drogas nesse país.
Vamos em frente!
Abraços,
Daniele (Danizinha)
Eu agradeço.
Compartilho de uma sensação muitas vezes silenciosa, autista e outras paralisante que me toma diante das intolerâncias humanas em compreender as complexidades da simplicidade do trabalho, da conversa, do encontro, do olhar dessas pessoas consumidoras de substâncias, para tantos, recursos de vida.
Tenho cada vez mais pensado que devemos investir nas pessoas, na ampliação das possibilidades de compreender os sujeitos e suas subjetivações a partir do amplo processo dialético de vivência social. Individualidades. Escolhas. Possibilidades. Sentidos pessoais. Alteridade. Desejos.
Quando encontro essa chave me animo um pouco e tenho pensado na fechadura e na porta!!
Ouvir de vc esse lugar me conforta…bastante…(silencioso na solidão pode ser depressão, rsss)… ouvir de Patricia também, anima!
Obrigada!
Abraços!
Querido Nery,
O belíssimo e sensível documentário que assistimos hoje na finalização de mais uma Jornada de Estudos do Cetad, o qual conta a história do Cetad na visão de Milena, Carol e Paulinha, aliado a esse seu tão pertinente desabafo, apenas reafirmam que essa luta não pode parar!! Falo da luta pela dignidade humana das pessoas que fazem uso de substâncias psicoativas. O Ponto de Encontro é mais um lugar que defende essa dignidade, assim como o Cetad, os CAPS e outros serviços que compõem a Rede de Atenção Psicossocial aos Usuários de Àlcool e outras Drogas. Enquanto tivermos, capacidade inventiva, fôlego e a certeza de que estamos trilhando um caminho em defesa de uma causa justa, devemos seguir lutando!!
Abraço!
Mônica Coutinho.
Cetadiana de coração e alma!
Muito bom ler seu post, Nery! É preciso estar sempre de pé no chão e sinto isso aqui. É preciso também sempre re-inventar, cotidianamente, o fazer e o pensar. E, acredito que é daí a militância no que nos move; pois, não só mover tudo e brigar para que funcione da nossa maneira, mas também silenciar, estar de pé no chão, acolher e talvez recuar para avançar. Isso pra mim faz parte da luta! Abraços!
Conheci O Antonio Nery em Vitória /ES ano passado em um seminário e fiquei encantada .Foi o alento que necessitava em momento determinante na minha vida Não se cale ,dai os caras terão vencido nossa voz, pq a gente precisa falar , as vezes gritar e juntos nossa voz fica mais audivel
Abraço
Denise Bourguignon
Professor,
estou tocado por suas palavras, co-movido por sua indignação. Talvez porque não sejam apenas suas, nem as palavras, nem a indignação. Somos muitos, cada vez mais silenciosos. A maré conservadora é tão forte, que em diversos momentos nos tira a fala, intimida nossa capacidade de ação. Que fazer, senão mais uma vez, e sempre e tanto, levantr os olhos mais uma vez e afirmar, “em ato e teimosia”, nossas precárias certezas, alinhadas com o respeito à autonomia e aos direitos demasiado humanos das pessoas que usam drogas.
Feliz por saber que ficará menos silencioso agora!!! Quando leio tuas palavras percebo que devo me manter firme, pois nos dias de hoje, sabemos que mais do que nunca precisamos nos fortalecer para “lutar a boa luta”
Muito bommmm:)
Nery, obrigado por compartilhar conosco suas ideias e vivencias num momento tão fundamental em que ao calarmos, recuamos de alguma forma na luta. As vezes nos paralisamos com as torpes ações higienistas como forma de lidar com a secular miséria estampada pelas ruas desse país. As políticas públicas a reboque dessa onda retrograda se fragilizam ainda mais e as vezes se deturpam…. Parabéns pelo texto.
a sua decisão em ficar menos silencioso, é sem dúvida a esperança…
Sem palavras me rendo ao seu desabafo com louvor. Que Deus o proteja sempre. Força e coragem. Precisamos do seu exemplo.
Lendo suas notícias aqui de Paris, onde estou fazendo meu estágio doutoral, fico aliviado em saber que nem tudo está perdido, pelo menos minha esperança ainda respira mesmo que muito precariamente
…
Hay hombres que luchan un día
Y son buenos.
Hay otros que luchan un año
Y son mejores.
Hay quienes luchan muchos años
Y son muy buenos.
Pero hay los que luchan toda la vida:
Esos son los imprescindibles.
Bertolt Brecht
Você é uma dessas pessoas imprescindíveis
Magnífico!
Que não esmoreça nem cale esta voz…
Silenciar, jamais…
Professor Nery,
Obrigado por suas palavras e parabéns por romper esse silêncio. Tenha certeza que sua fala é muito importante, para muitos, muitos… Como estudante de psicologia e sendo seu aluno, não esperaria palavras menos precisas, nem menos encorajadoras.
Parabéns Professor Nery,
Professor no melhor sentido da palavra e cujos ensinamentos guardo até hoje como minhas melhores lembranças da faculdade de medicina! Saudosas manhãs de quinta feira no auditório do CREMEB em Ondina!!
A sociedade precisa de pessoas como o senhor!
Abraço