Esperei o dia 12 de abril passado, uma sexta-feira, com a expectativa do soldado às vésperas da batalha. E por que? Porque iria dizer aos baianos, através da Rádio Metrópole (Jornal do Meio-Dia, 12 às 13 horas), o quanto havia de indignação, raiva, quase dor, em minha alma. E por quê? Porque durante uma semana recusei-me acreditar nas peças publicitárias espalhadas pelos quatro cantos da cidade dando conta do novo nome do Estádio Octávio Mangabeira – apelidado pelos baianos, de Fonte Nova. Li que nosso estádio havia se tornado uma arena, Itaipava Arena Fonte Nova, vinculando nossa praça de esportes a uma bebida alcoólica, uma das tantas marcas de cerveja.
E por que isto fez ferver o meu sangue? Porque a alma e o coração da gente de Salvador têm várias fontes, uma delas é a Fonte Nova, descoberta pelos moradores do Tororó e Nazaré, uma alternativa à outra velha fonte, contaminada pelas águas do Dique do Tororó. Naquele lugar onde havia uma pedreira, e aonde mais tarde jovens estudantes iriam jogar futebol, segundo relato de Eduardo Gantois, ergueu-se e foi inaugurado em 28 de janeiro de 1951 o Estádio Octávio Mangabeira, homenagem ao então Governador da Bahia, com partida disputada e vencida por um a zero pelo Botafogo de Salvador contra o Guarany da Bahia. Contudo, a Fonte Nova estava lá, na memória esquecida, mas viva, da gente da Cidade da Bahia. Concebido por Diógenes Rebouças, também responsável pela sua ampliação entre 1968 e 1971, a Fonte Nova ganhou anel superior e sua capacidade passou para 60 mil pessoas. Foi num silêncio quase constrangedor que a Bahia viu sua implosão em agosto de 2010, motivada pelo desabamento de parte deste anel em novembro de 2007, e as exigências da FIFA para a Copa das Confederações em 2013 e a Copa do Mundo em 2014.
Dia após dia, durante três anos contados em painel gigante, vimos surgir e crescer o novo estádio, de formas curvas, feminino, exuberante. Para sua inauguração veio ter conosco a Presidente Dilma Rousseff. Seu ato simbólico, segundo a imprensa, o pontapé original, foi dado com o pé esquerdo… Participaram do ato várias de nossas estrelas, dentre as quais Ivete Sangalo, representando a torcida do Esporte Clube Vitória, e Claudia Leitte , representando a Nação Tricolor. Para esta festa o estádio amanheceu abraçado por uma grande fita, lembrando a Fita do Senhor do Bonfim. Um grande laço ornava o lado sul, sob o qual, estarrecidos, lemos o nome do novo estádio: ITAIPAVA ARENA FONTE NOVA.
Como suportar, depois de quase 30 anos cuidando de usuários de álcool e outras drogas, e seus familiares, que nosso estádio tenha seu nome vinculado ao produto mais danoso à saúde das populações? Como admitir que a droga responsável ou associada à maioria das mortes violentas seja associada ao esporte? Como conviver com as mortes no trânsito das cidades e estradas e os gritos das torcidas, vinculados às alegrias e tristezas das vitórias e derrotas ao longo dos campeonatos de futebol? Se por tudo isto lamentei na Rádio Metrópole, lamentei mais ainda a presença de nossos artistas no ato inaugural: não precisavam destes 30 dinheiros. Lamentei que nossos demais ídolos tenham ficado silentes. Não ouvi nossos radialistas, barulhentos, levantarem a mão ou a voz. Não conheci nome de político que tenha ido à praça pública manifestar seu repúdio ou proposto, da tribuna, qualquer moção, muitos deles inimigos públicos das drogas em nome de Jesus… Não conheci qualquer manifesto de advogados ou de sua ordem. Não sei quanto a dor desse novo nome alcançou a categoria médica. Não ouvi os psicólogos ou o Conselho Regional de Psicologia. Tampouco ouvi os antropólogos ou os sociólogos. Não li qualquer notícia sobre alguma ação dos Ministérios Públicos Estadual ou Federal. Não sei porque motivo silenciaram-se os professores de todos os níveis, os alunos, o clero que tantas vezes se insurgiu contra as iniquidades, a violência, defendeu a reforma agrária e a infância abandonada. Silenciaram-se engenheiros e arquitetos da Bahia; ficou em silêncio o Instituto Histórico e Geográfico, sempre defensor de nossas tradições. Onde estão as Secretarias de Turismo do Estado e do Município?
Lamentei que a mídia de minha terra tenha louvado a inauguração, e publicado foto de página inteira de um estádio embriagado…Sem comentários.
Aqui, plagio o poeta: “ baianos, baianas, onde estão que não respondem; em que mundo , em que estrela se escondem…”
No dia da inauguração, 7 de abril de 2013, cada pilar da Fonte Nova ostentava imenso painel onde se lia: 100% Futebol, associando, visualmente, cerveja e bolas. No que me diz respeito, permanecerei 100% contra qualquer argumento, em particular econômico, que tente justificar a imoralidade da submissão da nossa história, das tradições de nossa cidade, da história de nosso esporte a uma marca de cerveja. No dia da inauguração da Fonte Nova, sem saber o que fazer com o imenso mal estar que me invadiu, ouvi em uma rádio, Chico Buarque cantando (ou me provocando?):
Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu…
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino pra lá …
Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração…
A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a roseira pra lá…
Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração…
POST SCRIPTUM: Continuo dizendo aos meus alunos que as substâncias psicoativas tornaram possível suportar a dor de nossa humanização, a dor provocada pelo reconhecimento de nossa finitude. Continuo atribuindo imenso valor antropológico aos psicoativos. Mas, indubitavelmente, atribuo maior valor às pessoas. Continuo discordando, radicalmente, dos enganos que pretendem encobrir com falso manto da alegria os danos que portam.
Realmente lamentável essa perniciosa associação que se faz no Brasil de futebol, cerveja e mulheres, que acaba por colocar nossas “Marias” em uma situação de ainda mais sofrimento e dor. Tudo em nome de 30 ou mais “dinheiros”.
Realmente a bebida que deveria ser proibido o seu comercial assim como acontece com o cigarro, agora escancarou. Deixou-me impotente em ver o nome de uma cerveja justamente num estádio de futebol onde se deveria promover a saúde. Com certeza a responsabilidade de quem permite tal insanidade não conhece os efeitos danosos do alcoolismo numa família ou já está afundado na mesma para não ter olhos de ver. Período atrás um juiz do Paraná propôs que ficasse proibido o comercial desses produtos que a muitas famílias prejudica de maneira desastrosa e hoje vimos tal futilidade numa construção pública, portanto construído com os nossos impostos.
Por esse motivo apoio ao Sr. Antônio Nery e a todos que o apoiarem.
Othon Freitas
Doutor Antônio Nery. Ao tempo em que parabenizo por esse gesto de médico responsável e conhecedor dos danos que esses produtos causam a tantas famílias, venho sugerir que façamos um boicote à Fonte Nova, que, aliás, o Senhor iniciou e divulgarmos com adesivos em automóveis e que esse só termine quando retirarem sua propaganda daquilo que nos pertence, o Estádio Otávio Mangabeira. Aparecerão apoiadores. Acredito que igrejas e outros seguimentos que lutam pelo melhoramento do ser humano.
Othon f Freitas –
Querido Nery,
Não sou baiana, não gosto de futebol mas fiquei indignada com essa mudança do nome do estádio de vcs.
Mas, aqui por São Paulo, tomei as providências que pude. Encaminhei seu desabafo pra o respeitado jornalista Juca Kfouri. O Juca imediatamente colocou sua manifestação no Bolg dele (em destaque).
Sei do alcance do futebol para nossa população e sei da importância da propaganda.
Pronto… daqui alguns anos podemos contar com mais pessoas bebendo e se incapacitando com o uso abusivo de álcool. Tá feito o “serviço”.
Sim, na Holanda tem estádio com nome de cerveja mas…. não estamos na Holanda. Estamos no Brasil onde ainda precisamos beber para matar a fome.
Também trabalho com isso ha muitos anos, como vc e queria dizer que precisamos que você não “pendure suas chuteiras” , que você permaneça nos oferecendo suas denúnias e seu conhecimento.
Grande abraço
Lurdinha Zemel
Perfeito! Mas o que dizer de um povo que suporta em todos os cantos e coisas possíveis o nome de Luiz Eduardo Magalhães, a quem nada tenho contra, mas que certamente não merece mais homenagens do que centenas de outros baianos, que dignificaram e elevaram o nome da nossa terra bem mais!
Não só o nome da Arena Fonte foi dragado pela usura capitalista, vejamos tambem, o Cine Glauber Rocha que Agora é espaço Unibanco de cinema, ou seja , logo, logo… teremos silenciosamente, o Espaço Cultural Coca Cola Barroquinha, o Teatro Tim Castro Alves e assim por diante. Nossa memória, identidade e cultura vem sendo desrespeitada tão cruelmente pleos grandes empresários, banqueiros e gestores da cultura, infelizmente, desde que os portugueses atracaram por estas terras. Vamos dizer nao ao capitalismo mais que selvagem e abusivo! Chega de desrespeitos vários! As coisas e os nomes das coisas!
caro professor, lembre-se que o dinheiro e poder corrompe as pessoas muita gente vende a alma ao diabo por alguns trocados ou muitos. nao se espante, fiseram ha pouco tempo com o aeroporto dois de julho, que tambem ja se chamou santo amaro de ipitanga. bvio que nao sao nomes de bebidas (drogas), mas para mim eles nao se preocuparam nem um pouco com isso e sim com o que vao faturar.
Date: Sun, 28 Apr 2013 17:31:42 +0000 To: luizcalheiros1@hotmail.com
Prof Nery : Você ” É O CARA ! ” PARABÉNS pela apresentação desse artigo. Concordo plenamente com você . Arena Fonte Nova, não pode ser alterada com nome de propaganda de bebida alcólica
Sou sobrinha de Othon e também indignada com essa falta de respeito com o povo Baiano, e fico mais triste ainda com essa vinculacao com nome de bebida.
Sou cidada Holandesa também , vivendo aqui há dez anos , e por isso quero informar que o Stadium daqui se chama Amsterdam Arena. O que temos com o nome Heinenken ,é um espaco pra Show’s, chamado HeinekenMusicHaal, que é um local aparte, perto do Stadium., destinado apenas pra show’s.
Espero que o Sr. Nery , continue escrevendo sobre os absurdos que andam acontecendo com a nossa Nacao.
Um abraco, Cristiane F. C. De Zeeuw.
Trabalhando com saúde mental também, numa situação como essa (e em tantas outras!), me sinto como uma formiga lutando contra um elefante. Mas ainda que quase todos se calem, ainda há de restar algumas vozes que possam ecoar por ai. Como a do senhor, que ecoou por aqui… Talvez essas poucas vozes não mudem muita coisa, mas não percamos o direito de nos indignar, ao menos. E lembrando de Brecht: “Nós vós pedimos com insistência, não digam nunca: ‘isso é natural’, para que nada passe a ser imutável”.
Abraço!
Parabéns! Artigo perfeito… comentários coerentes… Concordo plenamente com tudo que foi dito aqui… O que dizer mais? Faço minha as palavras de vocês e me coloco à disposição para participar de qualquer manifestação contraria a este absurdo.