Não vou tratar de drogas. Não agora. Vou tratar de Salvador, a cidade que adotei para viver, desde 1963, aonde cheguei numa madrugada com a missão de matricular-me e a mais quatro pessoas queridas, uma das quais meu irmão, no Colégio Central da Bahia. Àquela época, Salvador era mais simples e fácil de viver. Os engarrafamentos eram muito mais raros, apesar do forte trânsito. Na segunda metade dos anos sessenta, era possível atravessar o Campo Grande a pé, tarde da noite, ou caminhar até a La Fontana, famosa pizzaria da Avenida Carlos Gomes, sem qualquer temor. O Porto e o Farol da Barra, Placafor, a exótica Praia dos Artistas, Itapoan e a Ribeira, eram as praias dos baianos de acordo com suas residências, status social ou liberalidade. O Abaeté ainda era uma “lagoa escura, rodeada de areia branca”. O Morro de Ondina era um dos lugares favoritos para alcançar um dos mais bonitos horizontes da Bahia de Todos os Santos. O zoológico, próximo, já era pobre apesar da vizinhança com o Palácio do Governador. Não vivíamos assombrados pela violência. Éramos mais cordiais e generosos uns com os outros. É verdade que a maconha atormentava as famílias. Éramos felizes e não sabíamos, repetindo conhecida frase popular.
Hoje, vivemos numa cidade feia, suja, quase triste, apesar da luminosidade exuberante, das festas pasteurizadas e da quantidade de bares movidos a axé e pagode. As praias, sem atrativos que não os naturais, rodeiam uma orla degradada; as ruas são mais buracos que qualquer outra coisa; não há passeios para pedestres; ciclovias, nem pensar; sinalização horizontal de trânsito, pouco visível aqui e ali; sinal sonoro para deficientes visuais, só de ouvir falar em algum seminário na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFBA. Deus que nos livre de procurar uma rua pelas placas. Para os que gostam, há os shoppings centers, o Teatro Castro Alves, os cinemas de arte e o Museu de Arte Moderna. Estou sendo injusto: Salvador ainda tem muito mais coisas boas e interessantes. Mas, a cidade tem medo, temos muito medo, em geral atribuído ao crack, cocaína sob a forma de pedra, alardeado pelos meios de comunicação como verdadeira epidemia. Talvez seja, tecnicamente, uma epidemia; mas, se for este o caso, é uma epidemia sem o valor e a importância apresentada a cada dia, por uma mídia desinformada; não corresponde à realidade: muito mais importante do que o consumo de crack, registra-se o consumo de álcool, de tabaco, de maconha e de medicamentos desviados de seu uso médico.
O que ocorreu com nossa cidade?
Temo que a cidade sejamos nós, as pessoas. Nós que sujamos as ruas, nós que urinamos à luz do dia em qualquer lugar. Estacionamos nossos carros como se fossem os únicos; ensurdecemos as noites com nossos carros movidos a pagode e funk; telefonamo-nos para avisar onde estão as blitz que salvam vidas, retirando dos volantes motoristas alcoolizados. A cidade somos nós que não obedecemos à regra elementar de ultrapassagem pela esquerda. Somos a maior cidade daltônica do mundo: não distinguimos o vermelho do verde e é quase ridículo ficar esperando, no meio da rua, a mudança de cor no semáforo. A cidade somos nós que quebramos as lixeiras públicas, esvaziamos os saquinhos de lixo de nossos carros pela janela, na rua; jogamos lixo pelas encostas mais próximas ou mais distantes do Centro ou transformamos avenidas em “centros de triagem de material reciclável (lixo)”, a céu aberto, a exemplo da Avenida Magalhães Neto. Agradecer quando alguém segura a porta do elevador ou pedir licença para passar pela escada rolante, nunca. Somos os que lutam para retirar da Rua Direita de Santo Antônio, no Centro Histórico, o Ponto de Encontro, serviço voltado para os excluídos, invisíveis, miseráveis, famintos, sujos e, não raro, delinquentes, sob o argumento da insegurança e do “aumento da criminalidade que o serviço ocasionou”. Somos os insensíveis às crianças e adultos jovens nos semáforos, lavando para-brisas e produzindo malabarismos com todo tipo de material, até cocos ou, simplesmente, implorando por centavos. Somos a intolerância e a hipocrisia. Nossa higiene social exige que os miseráveis sejam mortos ou afastados dos nossos olhos. Esquecemo-nos que são nossos filhos ou, no mínimo, irmãos pelo parentesco da natureza humana. Somos uma cidade onde as pessoas parecem nunca ter ouvido falar de vulnerabilidade e atravessam ruas movimentadíssimas deixando de lado as passarelas, que são poucas, talvez por serem lugares favoritos de “irmãos assaltantes”. Somos uma cidade que tem medo, muito medo de si mesma, de nós mesmos.
Não vejo alternativa para esta cidade se tivermos uma gestão de remendos. Desejo e espero que nosso prefeito inicie o maior programa possível de educação, fiscalização e proteção da coisa pública. Quando me refiro à educação, estou pensando não só em instrução – ler e escrever – mas em uma mudança de cultura que nos ajude a sair do estado de descuido para o estado de responsabilidade, no qual todos nos importemos com o que fazemos ou deixemos de fazer. Fiscalizar e cumprir as leis: eis a questão. Penso, por exemplo, nas empresas da construção civil que sujam as ruas quando como e onde querem, sem qualquer consequência; nos ambulantes que brotam do nada e tomam as ruas; nos postos de combustíveis que se transformam em bares; nas empresas de ônibus urbanos que ditam as regras de funcionamento do transporte urbano, tão precário, sem esquecer o modo como seus motoristas trafegam, ameaçadoramente. Penso no grande número de taxistas deseducados; nos postos de saúde, verdadeiros postos de doença e abandono. Penso nos que sujam, impunemente, as paredes e muros pelos quatro cantos da cidade, incluindo as propagandas eleitorais. Penso nos que suspendem faixas e placas pela cidade, sem qualquer autorização, ou escrevem nos postes de iluminação números de celulares para retirada de entulhos ou trazer de volta o amante fujão. Penso nas escolas que se tornaram teatro onde são encenadas tristes peças nas quais professores desmotivados e alunos sem compromisso se desencontram sob o olhar de pais ausentes.
Não vejo alternativa para nós que construímos e habitamos a cidade, sem um programa de governo municipal centrado, durante quatro anos, na transformação cultural de nossa gente- toda a nossa gente – e que devolva a autoestima aos nossos filhos, fazendo da escola o lugar de construção do futuro, tornando-a um lugar formador de cidadãs e cidadãos, de professores de fato, que nos contaminem, a todos. Uma escola onde se possa aprender o Hino Nacional, da Bandeira e da Bahia, evitando o vexame das cerimônias públicas nas quais a maioria faz mímica ou cover…. Sei que há muitos outros aspectos a serem considerados; tomei apenas aqueles que me saltam aos olhos a todo instante. Penso que se nosso governante cuidar das pessoas, no sentido de suas necessidades mais elementares – transporte, habitação, saúde e trabalho – faremos avanços. Contudo, sem transformações radicais que só a educação pode promover e um sério respeito à Lei, estaremos fadados ao fracasso, à decadência, à violência e, certamente, ao aumento do uso de drogas legais e ilegais.
Fico preocupado quando penso em nosso jovem e recém-eleito prefeito ACM Neto. Por mais que trabalhe, se não for lúcido e corajoso o bastante para iniciar um longo programa de educação popular, envolvendo ricos e pobres, periféricos e centrais, letrados e iletrados, será, no final de seu mandato, apenas mais um prefeito, como outro qualquer.