Dia 07 de dezembro…

Dia 07 de dezembro último, a Presidenta Dilma Rousseff apresentou em Brasília, o plano “Crack: podemos vencer”. Este título substituiu designação inicial mais desastrosa “Brasil contra o crack”, na lógica amplamente divulgada pela mídia nacional e sustentada por políticos desinformados (ou interessados) na perpetuação deste engano socialmente construído.

Concedi, pouco depois, entrevista à Folha de São Paulo, além de outros periódicos, na qual sustentei que o uso de crack se restringe a uma população específica, extremamente excluída, os excluídos dentre os excluídos.

Gravíssimo, o crack é a cocaína sob a forma de pedra, posto que utilizado via pulmonar provoca verdadeira “inundação tisunâmica” de cloridrato, acarretando desastre de proporções catastróficas para todo o organismo, em particular o sistema nervoso central.

Do ponto de vista psíquico, os efeitos são equivalentes: o mundo perde sentido, o usuário confunde-se com a própria droga, fundindo-se nela, paralisado. Droga e usuário tornam-se unidade indissociável.

O buraco monstruoso do não ser é preenchido pelo ser droga. A morte por intoxicação aguda é muito possível. Mas, como de disse um jovem usuário “a morte, morte, é secundária porque já estava morto há muito tempo”. Morte na impossibilidade, na não existência de direitos, no não lugar.

Esta droga, o crack, não é uma boa droga de mercado; não é como a cocaína em pó, cuja quantidade pode ser definida pelo usuário e cujos efeitos vão da alegria ao pesadelo, dependendo das circunstâncias, da droga e da alma do consumidor, em geral homens e mulheres bem situados na vida.

A classe média não quer morrer, quer gozar. “Não quer só pão e água”, quer circo. Os miseráveis excluídos usuários de crack, querem apenas evitar a falta-da-droga, condição mais insuportável porque é “o avesso do avesso”, o insuportável do insuportável. 

Por isso, o crack não é utilizado por qualquer um e não é um problema nacional; é um problema de vergonha pela falta de oportunidade para todos. Depois do lançamento do Plano, o Ministro da Saúde deu várias entrevistas. Li duas delas no site “Saúde com Dilma” e postei comentários. Um deles, é este que transcrevo a seguir:

“Em lugar de ‘oferecer’, teria preferido ler “criar condições para a construção de projetos de vida para quem vive na exclusão e na impossibilidade de quase tudo”.

Não basta criar vagas no SUS. É indispensável que o Sistema seja capaz de acolher e suportar os pacientes usuários de substâncias psicoativas que apresentam problemas clínicos, incapazes de serem cuidados ambulatorialmente, em especial nos CAPSad.

As enfermarias especializadas em álcool (e outras) drogas devem ser serviços de referência, e não banalizadas, correndo o risco de se tornarem “depósitos de drogados”.

De modo algum me agrada um plano para enfrentar uma droga específica – nem mesmo o álcool – mas um plano voltado para os usuários de qualquer droga (ou drogas), legal ou ilegal, em sua dimensão de dependência, quando se faz necessário cuidados médico-psico-sociais específicos e, em suas duas outras dimensões, experimental e uso regular controlado. Para estes, cabem adequadas informações e permanentes intervenções redutoras de riscos e danos.

Continuo me opondo aos slogans que evidenciam o crack como “droga principal a ser enfrentada” (antes, muito antes, vem o álcool, o tabaco, medicamentos psicotrópicos, cocaína em pó e maconha…). Devo dizer que sou inteiramente favorável à proposta governamental para criação de unidades de acolhimento, onde os usuários terão a possibilidade de iniciar algum projeto para suas vidas, além dos Consultórios de Rua, estes, entendidos como unidades multidisciplinares capazes de promover o encontro indispensável com excluídos, sem qualquer possibilidade de chegar à Rede Básica de Saúde.

Quando imaginei o Consultório de Rua do CETAD/UFBA, em 1995, tinha como norte: promover o cruzamento de olhares entre técnicos de diversos campos e os usuários de produtos psicoativos, com o propósito de construir pontes que, partindo de lugares impossíveis (e monstruosos), levassem a outros lugares, sem imposições nem constrangimentos e, menos ainda, compulsórios”.

 


6 comentários sobre “Dia 07 de dezembro…

  1. Professor
    Suas palavras como sempre são perfeitas e suas idéias irretocáveis. Dizem o que sempre desejei que as pessoas compreendessem. Também vejo e sinto as coisas assim no que diz respeito a essa droga, porém a droga maior é a invisibilidade dos usuários, excluídos e vistos como uma espécie de nódoa que a sociedade não consegue “limpar”.

  2. Roberto Vaz de Abreu

    Olá Professor,

    Saudações de Goiânia, cidade que amo, mas que infelizmente não tem espeço em seu coração para aqueles que precisam serem vistos como seres humanos que são. Nesta semana foi deflagrada operação em Goiânia na qual pessoas em situação de rua, usuárias ou não, foram recolhidas para averiguações, e o pior de tudo, com promessa de novas operações semana que vem.

  3. Oi, Nery,
    Gostei muito do seu texto pela profundidade das reflexões e pela forma direta como você sintetiza e transmite suas idéias.
    De fato, não há razão para justificar os grandes gastos com dinheiro público para combater uma droga que, comparativamente às drogas como álcool e cigarro, é, levando em conta a abrangência de seu domínio (os excluídos dos excluídos) e o cômputo geral dos prejuízos para a sociedade, menos preocupante e que exige para sua solução muito mais, como você disse, a criação de condições de sustentabilidade no âmbito econômico-social. Mas se o projeto de Dilma inclui a erradicação da pobreza, fiquemos na torcida para que ela tenha sucesso esperando que, com o fim da pobreza, o crack encontre, naturalmente, o seu fim.
    Um grande abraço,
    Anselmo

  4. Ricardo Azevedo Pacheco

    Professor.
    Sou Ricardo Pacheco, de Campinas SP
    Psiquiatra e psicanalista.
    Coordeno uma residência de psiquiatria no Cândido Ferreira, com 12 vagas.
    Supervisiono atualmente as equipes de 1 CAPS III, 1 CAPSi e 1 CAPSad 24hs daqui.
    Comecei um trabalho de pesquisa sobre toxicomanias na Escola de Psicanálise de Campinas por razões que o pequeno percurso de trabalho acima evidenciam por si ou, mais do que isso, impõe.
    Gostaria de agradecer pela qualidade do material e pelo trabalho que vejo existir para efetivar sua circulação.
    A linguagem é simples e evidentemente depuração de um esforço.
    Penso ser isso que as situações de supervisão e transmissão hoje demandam.
    Gostaria muito de intensificar a troca.
    Att.
    Ricardo Pacheco

  5. Liranilde C. Gomes Silva

    Professor, receio que o grande obstáculo a ser vencido é a dificuldade de grande parte da população em aceitar suas próprias impossibilidades frente à dor do “existir”. Penso que podemos chamar a atenção das pessoas para o fato de “comprarem” tão facilmente a veiculação midiática acerca de temas considerados “polêmicos” pelo nível de responsabilidade que se implica e da qual se esquivam. Parece difícil para uma família admitir um filho dependente químico como sinalizador (sintoma) de uma dinâmica familiar no mínimo discutível, ou mesmo admitir que não conhecem as dificuldades pelas quais os filhos passam, ou que não têm acesso aos filhos. Talvez por associarem este reconhecimento como assunção de “culpa”. Creio que o longo e necessário caminho a trilhar é o de desmistificar este equívoco através da discussão sobre a Dor do Existir inerente ao humano esteja ele dependente químico ou sublimando suas dores através do trabalho, da dança… por exemplo. Despertar a população para o fato de que ao invés de gastar energia pensando em como “se proteger” do crack, devem gastar tempo em entender seu funcionamento e avaliar suas escolhas e formas de enfrentamento frente a conflitos simples. Assim poderão refletir melhor sobre o que fariam diante de grandes crises, identificando e buscando os recursos mais adequados para lidar com a dor que sempre estará em nossas vidas de uma forma ou de outra.

  6. Luciano Monteiro

    Professor sua opinião sobre o estádio Fonte nova repercutiu até no Mato Grosso depois que saiu no Blog do Juca. http://www.cliquef5.com.br/TNX/conteudo.php?cid=26014&sid=211

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